28 de setembro de 2010

Ladrão de Sonhos - Suzanne Enoch

Ladrão de Sonhos
Suzanne Enoch

Editora: Nova Cultural
Assunto: Literatura Estrangeira / Romances / Romance de Banca
Edição 170
Série: Bestseller

Lançamento: 04/08/2010


- Sinopse:


Londres, 1813

Um ilustre cavalheiro...
Sullivan Waring só deseja duas coisas: a herança que é sua por direito, e vingança contra o homem que a roubou dele. Durante o dia, Sullivan é o mais respeitado criador de cavalos da Inglaterra; à noite, ele entra nas residências mais ricas e luxuosas, em busca dos lindos e valiosos quadros pintados por sua falecida mãe. Sua missão transcorre sem problemas. Até a noite em que é surpreendido por Isabel Chalsey. Vestida numa camisola transparente, Isabel é uma tentação maior do que qualquer outra obra de arte, e é impossível resistir a roubar-lhe um beijo...

Uma dama curiosa...
Surpreendida por um homem mascarado em sua própria casa, Isabel deveria estar tremendo de medo. Em vez disso, no entanto, a visão do atraente Sullivan a faz tremer de excitação. Quem é aquele homem, e por que está tão empenhado naquela busca? Isabel adora um desafio e está disposta a tudo para desvendar o segredo de Sullivan, mas ela corre o risco de convencê-lo de que ela é a maior de todas as recompensas...
_______

- Leia um Trecho:

Prólogo

Primeiro Regimento da Cavalaria Real
Maguila, Espanha
11 de junho de 1812

O capitão Sullivan James Waring abaixou-se para junto do pescoço de sua montaria bem na hora em que uma bala de rifle passou perto de sua cabeça. Os franceses continuavam a recuar, mas não por isso tornavam mais fácil o avanço dos ingleses. Direcionando Salty com os joelhos, recarregou a pistola enquanto ele e quase setecentos homens do Primeiro Regimento da Cavalaria Real e do Terceiro Regimento de Dragões da Guarda cruzavam a planície espanhola.
— Sullivan! Que diabos Slade está aprontando? — o cavaleiro ao seu lado gritou.
— Está avançando dez quilômetros sem assistência! — Sullivan respondeu, sério, sem nem saber se o capitão Phineas Bromley o ouviria sobre o som dos cascos e dos tiros.
Relanceou o olhar para os homens sob seu comando logo atrás. A formação estava se dissolvendo e os cavalos se mostravam cansados. Ainda assim, o general Slade continuava a galopar a frente deles.
Os seiscentos franceses adiante também estavam cansados, mas isso parecia pouca compensação. Dez quilômetros mais atrás, deixaram cerca de cem franceses capturados sob a vigilância de alguns dos dragões, uma vitória e um bônus de grande valia sob qualquer medida. Continuar essa perseguição
sem reforços seria loucura. Com a aproximação da vila de Manoela e do leito do rio mais adiante, aquilo estava começando a parecer suicídio.
Outro cavaleiro se aproximou. 
— Se continuarmos assim, em três dias chegaremos à costa e poderemos nadar até Dover! — o major Bramwell Lowry Johns disse, sem fôlego.
— Não viveremos tanto tempo! — Sullivan rebateu, piscando para se proteger da poeira. — Ali está Manoela. A sua patente é maior do que a minha e a de Phin, Bram. Se conseguir alcançar o general, que tal tentar lembrá-lo de que a cavalaria francesa está à nossa volta em algum lugar por aqui?
O major já ia responder, mas se assustou ao ver o chapéu voar.
— Eles acertaram meu chapéu, os malditos! — Bram atirou na cavalaria à frente deles. — Tome isso, seu bandoleiro!
Os franceses podiam ser bandoleiros, mas os Dragões Reais tinham seus problemas. Mais adiante o general brandia a espada, gritando como vinha fazendo nos últimos dez minutos:
— Depressa! Galopem, malditos! — A crina de cavalo de seu chapéu tremulava ao vento como uma serpentina. 
— Esse homem é o pior oficial que já conheci — Sullivan resmungou, começando a entender porque era uma ofensa punível atirar no próprio comandante.
Eles subiram numa colina na qual duzentos cavaleiros franceses e ingleses se espalhavam em pouco mais de quatrocentos metros. Adiante, Manoela em ruínas parecia deserta, bem como o barranco do rio salpicado de árvores.
— Isso não está me cheirando bem! — Phin exclamou, ecoando os pensamentos de Sullivan.
— Siga pelo flanco direito — Bram ordenou a Phin, subitamente sério ao sinalizar aos seus homens que tomassem o lado esquerdo.
Espalhados como estavam, as manobras de flanqueamento somente serviam para proteger a retaguarda. Gesticulando, Sullivan ordenou aos seus homens que continuassem pelo meio atrás do general.
— Idiota... — murmurou, pensando que pelo menos daquela vez o oficial não tinha parado para ajustar os estribos como um mês antes em Coruña. Entretanto, a insanidade presente não parecia um progresso muito considerável.
Os dragões franceses diminuíram o ritmo ao chegarem ao limite da vila. Sullivan levantou a pistola, acelerando enquanto Slade parava. O tolo provavelmente estava surpreso pela perseguição ter chegado ao fim.
— Arretêz! — ele gritou, focando a atenção nos oficiais de verde.
Ao mesmo tempo, Sullivan ouviu o grito de Phin:
— Retroceder! Retroceder!
Sullivan olhou para o lado na mesma hora em que uma bala de rifle quase o atingiu na cabeça. Lançando-se a partir da margem do rio, um regimento quase completo de uniformes verdes começou a atirar na cavalaria inglesa. A décima sétima francesa os estava esperando...
— Fogo! — Ele mirou para além dos dragões de Phin, que evacuavam, e atirou. Um dos franceses caiu, mas ele mal teve tempo de notar. O flanco direito formado por cerca de duzentos dragões do primeiro regimento estava se desintegrando.
Virou Salty e viu que a maior parte do flanco esquerdo corria na direção que tinham acabado de vir. Bram comandava sua montaria contra o fluxo, reaproximando-se.
— Sabia que tinha de ter ficado na cama hoje... — O segundo filho do duque de Levonzy arfava, guardando a pistola na cintura e desembainhando a espada.
— Quem sabe não encontramos seu chapéu no caminho de volta? — Sullivan resmungou. Um dos franceses já no solo tentava segurar as rédeas de Salty, mas ele o chutou no rosto. — Onde está Phin?
Virando-se novamente, viu o irmão mais novo do visconde Quence. O capitão estava caído, com metade do cavalo sobre ele enquanto os franceses estavam prestes a alcançá-lo.
Sem pensar, Sullivan incitou Salty, que galopou diante da linha do inimigo. Ele brandiu o sabre, sentindo o tranco quando a lâmina atingiu os soldados.
— Phin!
Phineas Bromley conseguiu se levantar a tempo de pegar a mão estendida de Sullivan, que tirando o pé do estribo, ofereceu o apoio necessário para o companheiro subir atrás de si. Salty oscilou um pouco até se acostumar à carga extra, mas logo prosseguiram na direção que tinham vindo.
Bram flanqueava-os e proferia obscenidades em francês conforme o general passava por eles urrando:
— Cinquenta libras para o homem que ficar e lutar!
— Otário... — Bram resmungou.
— Obrigado, Sully! — Phin gritou em seu ouvido.
— Não foi nada. Minha mãe quer pintar seu retrato, lembra- se? Você não pode morrer antes que ela o imortalize.
Algo quente queimou e umedeceu seu ombro esquerdo. Sullivan caiu para trás, quase derrubando Phin do cavalo.
— Sully? Sullivan!
Sua visão escureceu. A última coisa que se lembrou foi de Phin passando o braço por ele para segurar as rédeas, e Bram se aproximando para segurá-lo. Depois disso, tudo ficou escuro.

Capítulo I

Londres
Um ano mais tarde

Era em momentos como aquele que Sullivan Waring entendia a diferença que um ano poderia fazer na vida de um homem. Quaisquer que fossem as circunstâncias que o tivessem levado àquele ponto, ser alvejado no ombro parecia ser o melhor de tudo.
Ajustou a máscara negra sobre os olhos e mergulhou nas sombras da casa, agachando-se entre o muro branco e os arbustos baixos. Conhecia os horários e a agenda da aristocracia londrina, portanto esperou até bem depois da meianoite para fazer a visita. Aquela noite significava vingança.
E tinha o benefício adicional de ser perigosa.
A última luz do andar superior apagou, mas ele permaneceu imóvel por mais uns dez minutos. Tinha tempo e quanto mais profundo o sono dos moradores, melhor para ele.
Finalmente, quando os sinos das igrejas de Mayfair soaram três vezes em uníssono, ele se esticou.
As informações que lorde Bramwell Johns costumava lhe passar eram confiáveis, ainda que ele se perguntasse os motivos que o levavam a trair sua classe por nenhuma outra razão que não fosse o enfado. Mesmo assim, ele e Bram deviam a vida um ao outro diversas vezes, e ele confiava
no filho do duque de Levonzy. Bram nunca o traíra. O mesmo não poderia ser dito de seu próprio pai, o marquês de Dunston.
Claro que, ultimamente, o marquês devia ter a sua parcela de reclamações. Na manhã seguinte Dunston descobriria mais um motivo para se envergonhar, ainda que reservadamente, e aquele era o objetivo dessa noite.
Sullivan levantou o martelo e bateu na dobradiça da janela. Num único golpe a veneziana se separou da esquadria.
Deixando o martelo no chão, ele abriu a janela o suficiente para poder entrar.
Passara pela casa do marquês de Darshear em Mayfair pelo menos uma vez por semana antes de sua jornada pela península e nos seis meses desde o seu regresso. Ao ver os móveis de bom gosto da sala de estar, voltou a sorrir. Estava dentro da casa do marquês dessa vez, porém duvidava de
que um dia pudesse entrar pela porta da frente. Não que se importasse com isso. Não aprovava os amigos do nobre. Ou um amigo em especial.
Uma coisa era ser um bastardo; outra completamente diferente era ser tratado como tal, especialmente pelo próprio pai. Bem, ele sabia retribuir na moeda em que recebia. Ou até mais.
A melhor parte de suas excursões noturnas era que, apesar de ninguém mais entender o que se passava, o marquês de Dunston compreendia.
Estava quase certo de que a prole legítima dele também tinha ciência, ou pelo menos esperava que o marquês tivesse sido forçado a esclarecer tudo ao primogênito. E não havia nada que ele e seu precioso visconde Tilden pudessem fazer a respeito. Só lhes restava ler o jornal e ficar alarmados
com o que desencadeara para cima de seus pares, mas nada além disso.
Sullivan enfiou uma horrenda pomba de cerâmica no bolso e caminhou para a porta que levava ao vestíbulo. Ali parou de novo, à espreita. Nenhum som. Bram lhe informara que a família Chalsey passaria a noite no baile dos Garring
e até mesmo os criados já estariam dormindo àquela hora.
Cruzando o vestíbulo, virou no corredor principal, que desembocaria na sala de café da manhã, seguindo até o escritório e a cozinha. Não precisou ir até lá. Logo na frente da porta da sala de refeições, encontrou o que procurava.
— Aqui está você... — murmurou, o coração batendo mais rápido ao passar o dedo pela moldura dourada. Uma tela original de Francesca W. Perris, pintada logo depois de ela ter se casado com William Perris e abandonado Waring, o nome de solteira. Na época em que ela o criava na casinha
na periferia de Londres. Na época em que ela lhe prometera que, embora seu pai não o reconhecesse legalmente, ele ainda teria uma herança... A dela.
O problema foi que Francesca Waring Perris morreu na mesma época em que ele foi alvejado na Espanha, não obstante só ficasse sabendo da notícia muitas semanas mais tarde.
Ao voltar para casa alguns meses depois, ele descobriu que, apesar de ser bom o bastante para lutar pela Inglaterra, diante dos olhos da lei, não tinha direito a nada. Não quando George Sullivan, o marquês de Dunston, alegava que por Francesca ter morado em suas terras por tantos anos todos os seus bens lhe pertenciam.
Sullivan cerrou o punho, depois relaxou de novo. Lembranças e fantasias de vingança poderiam esperar. No momento estava na casa de alguém que provavelmente nunca conhecera sua mãe, mas que comprara ou aceitara um de seus quadros das mãos de Dunston. Não se importava se fosse um presente ou uma aquisição. O importante era que, ao nascer do sol, a pintura seria sua novamente. Sua herança.
E Dunston ouviria sobre o último roubo e rezaria para que ninguém mais fizesse a conexão.
Pegou uma segunda pintura de um artista obscuro como medida de segurança, depois tirou o caminho de mesa e enrolou os dois quadros. Um vaso de cristal e uma bandeja de prata da mesma mesa foram para seus bolsos. Pegou os quadros e os encaixou debaixo do braço, virou-se e... Parou. Uma mulher estava entre ele e a sala de café da manhã.
A princípio pensou que tivesse adormecido do lado de fora da casa e estivesse sonhando... Os cabelos loiros iluminados pelo luar caíam como cascata pelos ombros. A silhueta esguia e imóvel se destacava pela luz tênue que entrava pela janela. A camisola era diáfana... Ela bem que poderia estar nua.
Se fosse mesmo um sonho seu, ela estaria nua. Meio que esperando que ela desvanecesse no luar, Sullivan ficou parado. Na penumbra abaixo das escadas, ele estava quase invisível. Se ela não o tivesse visto, então...
— O que faz em minha casa? — ela perguntou. A voz trêmula.
Se ele dissesse a coisa errada ou se movesse abruptamente, ela gritaria. E então ele teria de lutar. Embora não se importasse, talvez isso o impedisse de sair com o quadro, seu principal objetivo. Exceto que ela ainda parecia... etérea na escuridão, e ele não conseguia deixar de sentir que
estava dentro de um sonho luminoso.
— Estou à procura de um beijo — respondeu.
Ela olhou da máscara para o pacote debaixo do braço.
— Sua visão deve ser péssima porque isso não é um beijo.
De má vontade e apesar de estar ocupado tentando encontrar um modo de sair dali com a pele intacta e a pintura embaixo do braço, teve de admitir que ela sabia se controlar.
Mesmo no escuro, sozinha e diante de um estranho mascarado.
— Talvez eu fique com os dois, então.
— Não terá nenhum deles. Ponha isso no lugar e saia, e eu não chamarei ninguém.
Ele deu um passo em sua direção.
— Não deveria me avisar de suas intenções — ele rebateu com voz baixa, sem saber por que se importava em argumentar. — Eu poderia estar em cima de você num piscar de olhos.
O passo dela para trás acompanhou o segundo dele para a frente.
— E quem está avisando quem agora? — ela perguntou.
— Vá embora!
— Muito bem. — Ele fez um gesto para que ela saísse de seu caminho, reprimindo a vontade de arrancar o tecido inútil da camisola e correr os dedos pelo corpo esguio.
— Sem os quadros.
— Não.
— Não são seus. Ponha-os no lugar!
Um deles era seu, mas Sullivan não poderia dizer aquilo em voz alta.
— Não. Contente-se que vou embora sem o beijo e me dê passagem.
Na verdade, a ideia de beijá-la já não parecia tão absurda como no começo. Talvez fosse por causa do luar, ou da hora tardia, ou ainda da excitação que o acometia toda vez que fazia o que havia um ano jamais teria concebido, ou ainda o fato de nunca ter visto uma boca tão tentadora como aquela.
— Lamento, então, pois teve a sua chance. — Dito isso, ela abriu a boca.
Movendo-se rápido, Sullivan diminuiu a distância entre eles, pegou-a pelo ombro com a mão livre, levantou-a e abaixou a cabeça, cobrindo-lhe a boca com a sua.
Seu gosto era de surpresa e chocolate. Esperava a surpresa, contava com isso para que ela não gritasse. O tremor que percorreu sua espinha quando os lábios se tocaram, porém, o surpreendeu. Assim como o modo sutil como as mãos da jovem subiram para tocá-lo no rosto. Sullivan se afastou,
 tentando formar um sorriso vistoso que encobrisse o fato de estar sem fôlego.
— Parece que consegui tudo o que vim buscar — murmurou e passou por ela a fim de abrir a porta da frente.
Do lado de fora pegou o martelo e se apressou pela rua até chegar ao cavalo que o aguardava. Guardando os quadros na bolsa de couro específica para aquele propósito, subiu na sela.
— Vamos, Aquiles — disse e o garanhão preto começou a trotar.
Depois de dez roubos, tinha se tornado um perito em antecipar tudo o que poderia acontecer. Aquela era a primeira vez, porém, que roubava um beijo. Só então levou a mão ao rosto para tirar a máscara. Estava sem ela.
Seu sangue congelou. O beijo... O maldito beijo o distraíra mais do que imaginara. E alguém agora conhecia seu rosto.
— Maldição!

— E o que eu faria em casa, Phillip? — lady Isabel Chalsey perguntou ao irmão mais velho ao desceram da carruagem da família. — Devo me esconder embaixo da cama? 
Phillip, o conde Chalsey, franziu o cenho e esticou as mangas do paletó como sempre fazia quando estava distraído.
— Ficou frente a frente com um ladrão, Tibby. O Saqueador de Mayfair, sem dúvida. Isso não é uma ocorrência comum.
— Exato, e é por isso que preciso contar a todos os últimos acontecimentos. Então você precisa me levar até Bond Street e não para um leilão de cavalos. Nenhuma de minhas amigas estará aqui, pois estão todas fazendo compras.
— Quando entrou na carruagem, sabia que eu vinha para Tattersall. Não precisava me acompanhar.
— Precisava sim, porque acho que mamãe quer me mandar para um convento para me proteger.
— Está sendo dramática de novo. Fico pensando se agiria de modo tão leviano se os objetos roubados fossem seus.
Por um instante ela considerou informá-lo de que sua virtude quase fora roubada, mas não queria ter a reputação de uma moça que beijava invasores. Ou saqueadores.
— Quase nada foi levado e, na verdade, não lamento que aquela pomba de mamãe tenha sumido. Mas não estou sendo leviana. Nem dramática.
— Ora veja. Da próxima vez vai acabar dizendo que o saqueador a teve na ponta da espada ou algo assim...
— Oh! Isso parece eletrizante, não?
— Tibby...
Isabel segurou o braço de Phillip ao entrarem no terreno de Tattersall. Costumeiramente, ela preferiria ficar em casa em vez de ir a um leilão de cavalos, mas depois de horas ouvindo sua mãe lamentando os objetos furtados, quase desmaiando ao se lembrar do perigo que a filha correra, Isabel precisou dar um basta. Ainda bem que não mencionara o beijo, ou já estaria a caminho de Burling em Cornwall e perderia o resto da temporada de bailes.
Deveria ter ficado aterrorizada. De fato assustara-se ao descer para pegar uma maçã e encontrá-lo no corredor.
Num casaco negro e com uma máscara preta, ele parecia um demônio, mas sua voz contradizia a aparência. Não se assemelhava a de um malfeitor, certamente. E os olhos verdes brilharam na luz do luar. O rosto quando ela lhe removera a máscara... Não, não era nenhum demônio.
— Não estou sendo dramática — repetiu quando percebeu que seu irmão esperava vê-la arrependida. — Sei que poderia ter sido ferida, mas não fui. E se falar sobre isso com minhas amigas me faz parecer mais corajosa, imagino que tenho esse direito.
— Imagino que sim — ele concedeu a contragosto. — Só queria que algo mais útil tivesse surgido dessa experiência.
Se ao menos tivesse visto o rosto dele, os policiais de Bow Street finalmente acabariam com esses saques. Sabe quedevemos ser pelo menos a décima casa roubada em seissemanas em Mayfair? O saqueador está deixando todos empânico.
— Agora você deseja que eu tivesse visto o rosto dele? - ela rebateu. — E eu que pensei que esperassem que eu fechasse os olhos e desmaiasse.
Phillip diminuiu o passo e a encarou.
— Não a entendo, Tibby. Isso foi sério. Confrontar um ladrão em sua própria casa...
— Fiquei com raiva — ela o interrompeu, começando a desejar que mudassem de assunto. — Se eu fosse um homem, poderia ter atirado ou coisa assim. Como não pude fazer isso, só me resta tornar o evento algo engraçado e fingir que não me afetou. Já acabou, de qualquer modo. Chorar seria perda de tempo.
Seu irmão deu um tapinha em sua mão e retomou a caminhada. — Tem razão. Você está bem e nada demais foi levado, por mais que mamãe reclame. Se não o tivesse surpreendido, o prejuízo seria muito maior. Portanto, se deseja ir até Bond Street para fofocar esta tarde, eu a acompanharei.
Mas só porque está sã e salva.
Salva e confusa, isso sim. Não, o assaltante não se portara, nem falara como um baderneiro, nem beijava como tal...
Não que ela tivesse beijado esse tipo antes. Havia algo estranho, porém... O modo como ele segurava os quadros, como se fossem um Rubens ou algo assim, em vez de serem o trabalho de um artista de menor importância. Como se fossem preciosos para ele.
— Ah! Ali está! — Phillip disse com um sorriso, apressando o passo. — Um verdadeiro campeão!
— De quem está falando? — perguntou Isabel, olhando ao redor.
— Daquele cavalo do haras de Sullivan Waring. Bram Johns também está lá.
Isabel divisou a figura em roupas negras. Lorde Bramwell, o segundo filho do duque de Levonzy com seus cabelos e olhos negros se sobressaía em qualquer lugar. Ele estava num picadeiro ao lado de um homem igualmente alto e esguio, perto de diversos cavalos, inclusive um lindo cavalo baio.
— Ele é enorme, Phillip! — ela exclamou. — Parece até carnívoro.
— Eu sou. — Lorde Bram se virou com um sorriso charmoso, tomando-a pela mão. — Mas não tema. Só mordo quando me pedem.
— Olhe os modos, Bram — Phillip o admoestou. — Minha irmã passou um susto ontem à noite.
— É mesmo? — Ele arqueou a sobrancelha. — Então nos conte o que houve.
— Fomos roubados. Isabel deparou-se com o ladrão no meio da noite. Temos certeza de que se trata do Saqueador de Mayfair. Ela poderia ter morrido. E ela que queria contar tudo... Phillip, definitivamente, não a acompanharia a Bond Street.
O outro homem se endireitou.
— Espero que esteja bem, milady — ele disse.
Ela fitou os olhos verdes claros, um deles obscurecido
por uma mecha de cabelo castanho-claro misturado com fios dourados. Bom Deus, como ele era belo... e familiar. Isabel ficou de queixo caído e sentiu o sangue fugir do rosto.
Era ele!
— O senhor...
— Perdão, lady Isabel — lorde Bramwell disse ao mesmo tempo. — Já conhece Sullivan Waring? Sully, lady Isabel Chalsey. Conhece o irmão dela, lorde Chalsey, presumo.
Antes que Isabel conseguisse emitir alguma reação e protestar afirmando que aquele era o assaltante que a beijara e que os roubara, seu irmão deu um passo à frente e o cumprimentou com um aperto de mãos.
— Sr. Waring. Da última vez que o vi não tive a chance de lhe dar boas-vindas. Estou contente que tenha retornado da península são e salvo.
— Eu também.
Phillip sorriu.
— Esse é o baio de quem ouvimos falar? Por Júpiter, ele é formidável!
Waring desviou os olhos de Isabel e fitou o picadeiro.
— Sim, esse é Ulisses — ele disse com uma nota de orgulho. — Acabou de completar três anos.
— Está treinado para montaria?
— Sim. — Waring assobiou e o cavalo girou a cabeça, aproximando-se num trote. — E apesar das aparências, ele é um camarada de bom temperamento — continuou, olhando rapidamente para Isabel antes de oferecer um pedaço de maçã ao animal.
Entregando o restante da fruta a Phillip, Sullivan se afastou da cerca. Lorde Bramwell e o irmão de Isabel começaram a falar sobre a raridade de encontrar garanhões de bom temperamento, enquanto ela mantinha os olhos em Waring que se postava ao seu lado.
— Sugiro que fique de boca fechada, milady — ele murmurou ao fitá-la.
— Acredito que já tenha tentado fazer isso comigo — ela disse, seca. — E não me ameace. Você não passa de um ladrãozinho comum, e eu farei com que seja preso.
— Comum, eu? — ele repetiu. — Farei com que seja arruinada se falar de mim. Eu poderia contar tantas coisas a nosso respeito, Isabel. Sobre você com um ladrão comum. — Com um sorriso leve que não se refletiu nos olhos, ele se afastou para continuar a conversar com os outros homens.
Isabel cerrou os punhos. Como aquele sujeitinho ousava ameaçá-la? Ele era bonito, mas não passava de um ladrão.
Refletiu um instante se teria sido tão discreta caso ele não parecesse um deus grego ou não beijasse pecaminosamente como o próprio demônio...
Seu irmão dissera que ela gostava de dramatizar as coisas e ela tinha de concordar. Não havia nada de mal em florear os acontecimentos para torná-los mais interessantes ao narrá-los. E ela, definitivamente, não apreciava receber ordens, tanto menos ser ameaçada quando nada fizera de errado. Sem falar que o sr. Waring a deixara confusa. Droga, detestava se sentir assim! Ela escondera partes do acontecido e ele a ameaçava?
— Posso concluir que quer comprar Ulisses? — ela perguntou ao irmão, enlaçando-o pelo braço.
— Ofereço cinquenta libras agora, desse modo não precisa se dar o trabalho de leiloá-lo — Phillip ofereceu. 
Waring deu um sorriso frio.
— Ofereça cem e poderei me mostrar disposto.
— Cem libras? Isso é...
— E quanto à égua? — Isabel o interrompeu, apontando para uma cinza no cercado ao lado.
— Ela não é para montaria — Waring informou sem fitá-la, aparentemente confiante de que sua ameaça a intimidara. — Pretendo vendê-la para cruzamento.
— Eu a quero. — Isabel mostraria que não se acovardava com facilidade.
— Tibby — Phillip disse baixinho —, primeiro, declarar que quer um animal não é a melhor estratégia para conseguir um bom preço. E segundo, uma égua sem treinamento? Para você? Se quer aprender a montar...
— Eu quero essa. Estou certa que se oferecer cem libras, o sr. Waring ficará contente em ceder a égua. Waring respirou fundo e disse, olhando ainda para Phillip:
— Eu concordaria.
— Mas...
— E — ela continuou como se seu irmão não tivesse começado a falar — tenho certeza de que o sr. Waring se prontificaria a treiná-la para mim.
— Não.
Dessa vez encarou-a. Pelo visto também não gostava de receber ordens. Mas ele era o pecador, não ela. Ele só precisava ser lembrado de quem tinha a vantagem naquele dia.
— Cem libras, sr. Waring — ela disse com um sorriso. — Sem dúvida consegue treinar uma égua para a sela de damas, ainda mais se ela é puro-sangue o bastante para cruzamento.
Ele a fitou de modo franco.
— Muito bem. Eu a entregarei em três semanas.
— Oh, não! Eu a quero hoje. Pode treiná-la em nosso estábulo.
— Tibby — Phillip interferiu —, o sr. Waring é um criador de cavalos muito procurado. Ele não tem tempo para...
— Cento e vinte libras, então. Por certo vinte libras o compensarão. — Isabel alargou o sorriso. — Então não desperdiçará tempo pelas ruas de Mayfair...
A mandíbula dele ficou tensa, a fúria esticou sua coluna. Todos os instintos de preservação de Isabel gritavam que ela deveria desistir e contar ao irmão o que acontecera na noite anterior. Tão forte quanto esses instintos, porém, era seu desejo de virar o jogo a seu favor. Nunca tivera um segredo dessa magnitude nas mãos e estava excitada demais para desistir agora. Não enquanto conseguia mostrar a ele que não se intimidava com um beijo ou uma ameaça.
— Sully? — lorde Bramwell o chamou e Waring, visivelmente abalado, balançou a cabeça.
— Levarei os dois para a Mansão Chalsey esta tarde — ele resmungou. — Por favor, me dê seu endereço.
Como se ele precisasse...
Com um sorriso e um gesto, ela disse:
— Phillip se encarregará disso. Minha égua tem um nome?
— Zefir, mas eu a chamo de Mimada.
Ele se arrependeria disso...
— Bem, como trabalhará para mim, de agora em diante a chamará de Zefir. Phillip, quando tiver pagado o sr. Waring, por favor, me ajude a escolher uma sela apropriada.
— A senhorita não cavalga? — Waring perguntou, arqueando uma sobrancelha.
— Bem, agora eu cavalgo, ou cavalgarei. Assim que o senhor terminar o seu trabalho.
Deliberadamente dando as costas, ela caminhou até o outro picadeiro para olhar a égua mais de perto, protegida, porém, pela cerca. Quer ela aprendesse a montar ou não, ao menos saberia onde o sr. Sullivan Waring passava os dias até decidir o que fazer com ele. E pensar que queria ter se encontrado com as amigas para narrar os acontecimentos excitantes da noite anterior. Nunca poderia imaginar que aquilo era apenas o início da história.


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